segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Causos de fantasmas: o demônio transfigurado de gorila


POR: JOSÉ BRILHANTE


Ilustração: Junior Fuziel 


Juca conta a história, toda vez que tem a oportunidade. As crianças adoram, arregalam os olhos e ficam ressabiadas de passar pelo mesmo local, onde aconteceu o sobrenatural.  

Era vazante, época de fartura e terra fértil. Tudo que se plantava, brotava frondosamente. A paisagem ficava linda, com belas praias marrons misturando-se com centenas de pés de feijão e milho, bem verdinhos, próxima a água barrenta.  

O local cresceu no misticismo. O boto rosa que vinha em busca das moçoilas, a feiticeira que se transforma em onça para comer gados dos fazendeiros ao redor (sempre tinha carne em abundância na casa dela) e a coruja rasga mortalha, que visitou a porta do amigo e vizinho de Juca, dias antes de morrer. Quando ela passa, anuncia morte. 

Com a partida do amigo, os costumes sempre falavam mais alto: após a morte de alguém próximo, ninguém poderia ir nas plantações, fazer qualquer coisa, porque apodrecia tudo e de todos, perdia-se toda produção. Era uma semana de luto. 

Juca estava aperreado. Teria que mandar algumas melancias para cidade e quitar uma dívida na pequena mercearia da comunidade. O dono já estava cobrando há tempos. 

-Eu quero meu dinheiro cabra. Você já está me enrolando há mais de 5 meses- falou o dono da quitanda

- Meu compadre acabou de morrer, você não tem coração?

- Eu tenho coração e muita dívida para pagar! – lembra o quitandeiro 

-Tenho uma plantação de melan...! Juca não termina a frase, sendo interrompido.  - Eu quero dinheiro seu safado. Somente isso.  Senão mando te dar uma surra, da bem dada! - decretava quem estava no prejuízo. 

“E agora meu compadre, me ilumina aí de cima. Não faça que apodreça o resto de minhas plantações” disse Juca, rogando ao amigo. 

Após muitos pedidos ao amigo celestial, as 5 horas da manhã, do outro dia, ele se arruma para lida, mesmo sabendo que a atitude poderia ser desaprovada por todos, era até um despeito. Mas não tinha escolha. O risco de beber somente liquido pelas próximas 8 semanas, fazia suas pernas tremerem. 

Juca, colocou o chapéu de couro, calça grossa, camisa mangas comprida, a espingarda (nunca se sabe quando pode encontrar uma caça no meio da estrada), botas sete léguas, e foi para plantação, sem saber o que poderia acontecer. A surra era coisa leve perto do que ia enfrentar. 

Ele trabalhava sozinho e lentamente, colhendo as melancias. O barco comprador, passaria somente no outro dia.  E sem pressa, as horas passaram, até a hora de largar o serviço, à noite. Mal sabia o que poderia estar lhe esperando. 

Percebendo que não enxergava mais nada, além da escuridão, Juca, arrumou-se e caiu na estrada. Tudo aquilo de frutas colhidas, já pagava sua dívida com seu credor. 

A caminhada era longa. Cada revoada de morcego e cânticos de coruja, arrepiava-se todo. Pedia ao amigo falecido, que o livrasse de qualquer mal.  Mas, não foi atendido. Ao longe, Juca ver uma moita se mexendo, e o coração palpitava a mil. As pálpebras aguçaram e, uma silhueta humanoide, com mais de 2 metros, estava se aproximando dele. 

No mesmo instante, os reflexos se foram. As mãos não aceitavam mais o comando do cérebro. Mas, lembrou que tinha a espingarda nas costas. Tentou atirar e a arma travou. 

Logo depois, um vento frio bateu no rosto, com Juca armado, mas sem eficácia. A única solução foi enfrentar de frente o desafio.

 Sem esperanças, observou direito e, estava bem próximo dele, um macaco andando em pé, de olhos vermelhos, babando de raiva, dando gritos e batendo no peito, parecendo estar com muita fome. Aí pensou logo: “Devo ser a janta dele. Esse macaco não é daqui. Deve ser o demônio. Meu Deus... me salva! ”. 

A primeira reação foi correr, mas não adiantava. Quanto mais corria, o algoz sempre estava perto. Sem opções, a única coisa que fez, foi entrar em luta corporal com o bicho. 

Mesmo sabendo que a batalha já estava perdida, acabou usando a arma como porrete, já que não estava atirando. Acertou bem na cabeça do macaco, para depois ver a espigar se espatifar em pedaços. De lá, só sentiu uma patada no peito.

Após muita demora, alguns moradores deram por falta de Juca. Ele praticamente sumiu da comunidade. Fizeram um mutirão em busca do morador. Depois de algumas horas de procura, o encontraram caído, desmaiado, com um grande roxeado no peito, parecido com uma mão de homem, só que muito grande. 

O trouxeram para a cede da comunidade e a notícia que Juca tinha sido encontrado morto, se espalhou rápido. Quando deram por conta, dezenas de curiosos, já o velavam. 

E para mais surpresa, o “morto” levanta da mesa de onde estava estirado, dá um grande susto no povo, pedindo um copo de agua, para em seguida poder contar o que houve. Como ressurgiu dos mortos e o que tinha lhe acontecido. 

Juca disse, rodeado de gente, que brigou com um grande macaco: “Era enorme, parentada. O bichão parecia um demônio. Até tentei atirar nele, mas a espingarda não prestou. Até dei uma cacetada, mas o macacão, tinha forças extraordinárias. Depois daí, peguei um tapa no peito e não lembro de mais nada”. 

Até o dono da taberna, se rendeu ao sobrenatural e resolveu dar um prazo maior para o ressuscitado, vítima do demônio macaco, pagar sua dívida.  

Nunca mais o macaco foi visto. E Juca, depois do ocorrido, sempre respeitou os dizeres ribeirinhos. 


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

Causos de fantasmas: Ouro do além

 

 POR: JOSÉ BRILHANTE

CHARGE: JUNIOR FUZIEL


Ele nunca vem para os corajosos e gananciosos. Os espertos acabam o encanto. Adiam o presente para outro felizardo. O medroso é o escolhido, pelo dono do tesouro, que falecera centenas de anos atrás.

Não existiam bancos por essas paragens, nos tempos dos desbravadores da Amazônia. Os tesouros levados por eles, na maioria das vezes eram enterrados. Quando uma grande praga dos trópicos dizimava a colônia, todas as pedras preciosas e principalmente objetos de ouro, eram esquecidos e engolidos pela floresta.

Francisca uma ribeirinha, cresceu ouvindo histórias de encanto, onde o além enriquecia os compatriotas com avisos: uma centelha de fogo indicava o local ou o dono vinha como demônio rolando pelo chão, mostrar seu carma e o motivo de sua cólera depois de morto.

Acostumada a lidar coma vida do interior, chica como era seu agrado, estava na gestação do quinto filho e, trabalhava fazendo farinha até seus últimos meses de grávida. Tinha até um ditado: “Filhos fortes e saudáveis, começam a trabalhar ainda na barriga”.

Tempo vai e vem e, o último mês para dar  a luz ia chegando. Pelas dificuldades da idade, 35 anos, ela acabou diminuindo sua carga de trabalho. Suas tardes ficaram para se refrescar na rede, embaixo de um cajueiro na sombra. Aquele era seu deleite: conseguir pegar no sono com um vento, sem carregar o peso do barrigão.   

Ramos, o marido, acabou ficando mais ocupado, sempre trabalhando, mas ouvindo a esposa dizer que nos cochilos da tarde, escutava vozes lhe chamando.

- Uma voz conhecida me chama meu velho! Eu me desperto do leve sono e olho ao redor, não vejo ninguém. Só os passarinhos cantando.

- É minha velha, tu já deve está caducando - falou o marido rindo, quando viu a cara de desaprovação da esposa. – Isso deve ser só impressão tua, te acalma, não deve ser nada - termia a acalmando.

Era só Francisca colocar a rede, para os ventos trazerem a voz, entrelaçada pelas folhas caindo, como se o ar fresco viesse como um alto-falante, que só ela escutava.

Mesmo com “vista grossa” de Ramos para a situação (ele não estava acreditando muito), ela decidiu dar uma espairecida. Viajou para casa da mãe, na cidade, e os acontecimentos sessaram. Uma semana tranquila sem vozes a lhe aperrear na hora do sono. Mas, no instante que chica voltou para o aconchego do lar, crente que estava livre das vozes, elas voltaram.

Os olhos já iam se fechando quando escuta de novo: “Senhora, por favor, me escute, estou sofrendo, me ajude”.

Ela abriu os olhos de vez, tomou um grande susto, dando gritos descontrolados, toda se tremendo, parecendo que ia desfalecer. Mas, recuperou-se e viu que estava na frente de um jovem negro, com roupas feitas de sacas farrapentas, uma espingarda nas costas e um chapéu de palha, mais velho ainda.

Francisca não acreditou, reconheceu a voz de seus leves cochilos, esfregou os olhos para ver se o homem sumia. Mas ele continuava lá, pedindo ajuda, sem seu marido por perto. Ele certamente, se vesse, iria acreditar nela.

- Eu preciso me livrar desse carma, me liberta por favor. O meu Coroner, no leito de morte, deixou-me essa maldição, um tesouro. Eu nunca o encontrei, acabei com anos de minha vida procurando, até morrer! Me ajuda. Só me libertarei quando você encontrar. Agora eu sei onde está. Não sinta medo, sou o dono do tesouro, ele deixou para mim. Você pode me liberar dessa maldição e ainda ficar rica.

Nesse instante, chica ficou petrificada de medo, sabia que o homem não era real ou era um personagem das histórias que ouviu na infância. Mas, após ter certeza que aquilo estava acontecendo, fez o que jamais tinha imaginado, respondeu ao fantasma sofredor:

- Eu vou te ajudar. Onde está o que te aprisiona e não deixa você ir?

- Está debaixo desse cajueiro, onde dorme todas as tardes. Você tem que tirar essa noite, mas faça sozinha - disse o fantasma desaparecendo.

Chica muito apavorada, meio atordoada, nunca que ia no meio da noite, grávida, cavar a terra com muito medo de fantasma, era capaz de abortar. Acabou esperando o marido chegar para lhe ajudar a ficar rica.

- Meu velho, estou com muito medo, me ajuda. Sabe aquelas vozes? Era uma visagem, ele está sofrendo e quer me dar riquezas.

Caído em si, o marido já meio chateado, resolve tomar uma atitude: “Vamos tirar o tesouro essa noite, como ele disse, para ver se é verdade”.  A noite caiu e lá estava chica e o marido.

Com muita força ele começa a cavar. Após alguns minutos, a ferramenta bate em uma caixa de madeira, linda como nunca viu. Olhou para esposa e disse: “É aqui minha velha, acho que vamos ficar ricos”.

Na hora que abriu a tampa de madeira, viu seus ouros e pedras preciosas, transformarem-se em carvões, tão brilhantes que chegavam a ofuscar a vista. Ramos não acreditou. Uma fortuna, esvaiu-se por suas mãos. Chorou copiosamente até perder as lágrimas e dar-se por convencido que tinha perdido tudo, quebrando o encanto.

As riquezas eram para Francisca, e não para ele. Só ela poderia libertar o fantasma do seu sofrimento eterno.

 

  


segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Causos de fantasmas: o finado que enforcava

 

POR: JOSÉ BRILHANTE

CHARGE: JUNIOR FUZIEL


Sempre foi uma comunidade pacata nas cabeceiras do Uaicurapá, com lindas praias no verão e, pescadores em suas canoas buscando aquele almoço e jantar. Uma caça aparecia, e o cardápio mudava, porém, os tempos de abundancia tinham se esvaído. Suas casinhas ficavam lá em cima, em terra firme, como chamam os antigos. Para chegar, tinha que enfrentar uma escadaria gigante, sem fim.

Uma vez ao ano a festa do santo acontecia. Era o evento mais esperado. Os “cabocos” vestiam as melhores roupas e os perfumes mais cheirosos, para tentar conquistar as ribeirinhas.

Toda a igreja ficava ornamentada com bandeirolas coloridas.  A comunidade ficava animada, principalmente com os preparos das guloseimas, vendas de bingos e pratos sortidos.

A pastorinha era de lei, e quase todo mundo fugia da cigana, mas todos se “achegavam” a dança com música ao vivo. Após aproveitarem bem, cada um procurava sua turma e geralmente findava a noite com uma cachaça na praia.

Com Raimundinho não foi diferente, bebia álcool como água e, acabou aceitando fazer uma saideira com colegas que ainda não tinha visto pelas redondezas. Até aí nada de anormal em tempo de festa.

Lá pelas tantas, com todos já embriagados, um dos companheiros de bebedeira, resolveu se refrescar na água. Com o álcool acima, nenhum dos colegas se opôs, inclusive Raimundinho, que até incentivou o camarada ao refresco. Ele mesmo, só não foi porque não conseguia nem se levantar. Só se mexia com muita sonolência, para ouvir depois, gritos bem leves.

O recém colega que estava em apuros, de relance, desesperado, viu Raimundinho se mexer, gritou por socorro a ele, com último fôlego, mas não ouve resposta. Com a adrenalina, o álcool evaporou da corrente sanguínea, percebendo assim que não sabia nadar, e poderia morrer.

Lucas, começou a se debater na água, para encontrar algum apoio e salvar a própria vida, porque os companheiros em terra, estavam todos adormecidos, não sabendo distinguir o que era vento ou uma pessoa se afogando.

Com o raiar do dia. Organizadores da festa, iam acordando os bêbados e recolhendo o lixo da praia, até encontrarem um corpo boiando, indo e voltando na correnteza do rio, todo inchado e comido por alguns peixes.

A pele do morto (Lucas) boiando, ficou toda roxa. O rosto estava desfigurado com o crânio amostra. Os peixes carnívoros (piranha e etc) que habitavam a região, tinham rapidez e fome voraz. Os olhos estavam saltados para fora, esbranquiçados pela água. A cena típica hollywoodiana de terror estava materializada na realidade.   

Após verem o morto, gritos de “ele está morto, ele está morto. Está boiando meu Deus. Os olhos estão para fora”, acabaram acordando o resto do pessoal que se encontravam “desmaiados”. O grupo quase automaticamente fez a contagem e faltava um dos colegas, o rapaz da cidade que estava passando a semana naquele interior. E para descobrirem quem foi a vítima, fizeram apenas uma constatação: “É o Lucas”.

Raimundinho, após passar o susto, ficou refletindo! Poderia ter ajudado o finado, ainda em vida, porque talvez tenha sido o único a ouvir os pedidos desesperados de Lucas. Contudo, o rapaz já estava morto e, não podia fazer mais nada para acalmar a consciência.  

Para contribuir com sua aflição, os dois dias seguintes não foram muito bons. Estava se culpando. Mas, ao saber do enterro de Lucas (o finado), Raimundinho por incrível que pareça, ficou em paz.  

Como tradicional “caboco” ribeirinho, recompunha suas energias na rede. Quando estava num sono pesado e tranquilo, começou a sentir um forte odor de enxofre misturado com podridão e, um grande calafrio. De imediato, o corpo começou a reagir, fazendo-o despertar. Era o que parecia para ele.

Quando abriu os olhos, estava um homem de preto, todo molhado, com o rosto escondido por uma sombra nada reveladora, velando seu sono. O misterioso olhava fixamente para seu rosto, com aquele cheiro fétido, exalando no ar. Nesse instante o corpo começou a tremer, da ponta do dedão do pé, até os fios de cabelo, perdendo em seguida suas coordenações.

Os braços e pernas não conseguiam responder ao comando do cérebro, e tudo que poderia fazer, era tremer. Até o ainda místico, soltar uma frase e deixar aparecer, na vista de Raimundinho, os dentes de fogo, parecendo brasas ardentes.

- Eu te pedi ajuda, sei que tu ouviu - disse o homem para o aterrorizado.

Quando escutou a primeira palavra, o paralisado Raimundinho viu de onde vinha o cheiro no ar. A sombra se dissipou e, a metade do rosto do “dito cujo”, estava comido, com os olhos para fora, do mesmo jeito que encontraram Lucas.

Mudo, o amedrontado já sabia quem era, tentava ficar em pé a todo custo, mas o corpo continuava rígido dentro da rede. E quando escorria lágrimas pelo rosto, a visagem, baforando fogo, gritou mais uma vez, já pulando no pescoço de Raimundinho, que só fazia se debater, curiosamente como Lucas no momento da morte.  “Você deveria ter me ajudado, para eu não morrer, agora vou te levar comigo”, dizia o fantasma se deliciando com o desespero da vítima.

 Percebendo que estava em apuros, Raimundinho, começou a orar com as mãos gigantes em seu pescoço. Sentia a agonia, mas não sabia que aquilo era real. Em seguida, os músculos foram relaxando e as condições de lutar contra a situação apareceu.

Com o corpo molhado de suor e o pescoço cheio de marcas vermelhas, o ribeirinho  pinguço, desvencilha-se e se liberta, vendo o fantasma desaparecer por entre a escuridão.

Raimundinho assustado, logo que amanheceu, foi procurar o curador da comunidade, para receber umas benzeduras e, tentar não ser visitado de novo pelo “Demo”, como ele falava. Desde lá nunca mais foi visitado pelo além.  

 

 

segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Causos de fantasmas: os mortos também choram


POR: JOSÉ BRILHANTE 

Ilustração: Junior Fuziel


Era uma região onde quase ninguém chegava, lá pelas bandas do Jará. Mas Antônio e Juvenal, descobriram por acaso aquele local de pesca. O cenário era lindo, rodeados de grandes paredões verdes, com muitos cânticos de pássaros e macacos. No meio tinha o rio, com muita abundância de peixes.

Eles pescavam quase todos os dias, nas madrugadas a fio, chamada de “porongar”, onde suas presas são mais fáceis de ser capturadas.

Eram somente pescadores e, não sabiam nada da história daquele vale misterioso e intocável, muito mistificado por uma velha “louca”, que acabaram conhecendo, quando gritava de sua casa, onde morava sozinha a beira rio.

“Eiiii...Vocês não devem pescar aí, ela fica brava, a mãe do rio. Não a incomodem. Vão embora” gritava a velha, gesticulando para os pescadores.

Antônio e Juvenal, ficavam se entreolhando e trocavam poucas palavras: “Essa mulher é louca ou só quer nos assustar e ficar com todo o peixe”.

Para “quebrar o gelo” e conseguir algumas regalias antes do trabalho, os pescadores tomaram coragem e simpatizaram com a desconhecida. E ficaram surpresos ao descobrir que Lurdes era uma boa pessoa.

Depois dessa amizade conquistada, todas as madrugadas eles encostavam em seu porto para pedir guarita e um cafezinho.

Na maioria das vezes eram recebidos com carinho. Ela só surtava quando estavam pescando, e sempre aconselhava para assusta-los mais: “Vocês estão enfurecendo os mortos, eles querem o rio só para eles, seus teimosos”.

Antônio e Juvenal, nunca levavam a sério. Sabiam que no outro dia ela daria o mesmo sermão e, tudo continuaria como sempre esteve: eles pescando com os mortos bem mortos.

Como de costume, a bela madrugada estava aflorava e o luar transformando o crepúsculo quase em dia. Estava tudo normal, nada além da pequena canoa, redes de pesca e dois homens sonolentos. Faziam o trabalho até dormindo se fosse possível.

Assim, partiram para o local, foram recebidos pela velha amiga e alertados como sempre, do descontentamento da mãe das águas (o ser sobrenatural que afugentava os intrusos).

A noite era luar, só ouvia o barulho da canoa e o atrito de redes caindo na água. No momento que o último fio de pesca afundou, sentiram um frio congelante passar pelas suas entranhas, seguido de um tremor incontrolável.

O ar ficou visível, com aspecto de gelo, fazendo com que suas respirações ficassem pesadas. Foi como algo transpassando por dentro deles, passeou pelos corpos e saiu, indicando a água, que ficou tão mansa ao ponto de hipnotiza-los. Era um brilho inconfundível, como se os tivessem atraindo para dentro dela.

Ficaram petrificados com os olhos vidrados por alguns segundos, olhando o brilho intenso no fundo do rio, que os chamava. De repente! Um grito ecoou em seus ouvidos: “Saiam daquiiiiiiii, saiam daquiiii”.

O grito se fez presente por duas vezes, surgindo do nada e findando, fazendo-os despertar daquele sonho acordado. Em seguida, já alertas, ouviram um choro de criança. Agora vindo da mata. O som viajava entre as árvores e chegava até eles, angustiantemente perturbador.  

A solução foi fugir. Deixaram as redes para trás, colocaram forças nas remadas, e foram embora o mais rápido possível.

No amanhecer, já em terra firme e com alguns amigos, os dois assombrados contaram a história. O boato se espalhou como rastro de pólvora, e não demorou muito para candidatos corajosos irem investigar.

Um grupo, de dia é claro, foram ao rio. Seguindo as dicas de Antônio e Juvenal que nunca mais quiseram voltar.

Ao adentrarem na mata, caminharam até encontrar um cemitério, muito antigo, com raízes entrelaçadas nas cruzes, quase fazendo parte da floresta.

O cemitério era de uma família, que supostamente, segundo Lurdes, foi dizimada pela gripe espanhola, ocorrida no mundo todo, durante e após a primeira Guerra Mundial.

Foi um mistério, os corajosos, associaram os gritos aos mortos enterrados na mata e começaram a levar mais a sério aquela velha estranha, que morava a margem do rio. 



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